Paulo Izael
Escrevo o que sinto, mas não vivo o que escrevo.
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NOS TEMPOS DA DITADURA
— Eu tenho consciência de minha nulidade frente às manifestações públicas.
— Realmente. Nunca presenciei seu engajamento em nenhuma causa.
— Não acredito que todos que marcham estão em sintonia reivindicatória.
—  A reivindicação coletiva é a melhor arma frente aos abusos praticados contra uma nação.
— Você acredita mesmo que numa passeata todos têm o mesmo ideal?
— Existem os oportunistas que usam o ato do protesto para proveito próprio. Mas, esses que praticam atos oscilatórios são insurgentes de facções duvidosas. Crer numa causa é manter a chama da esperança. Sem mudança inexiste o novo.
— você fez parte da luta armada contra a ditadura, certo?
— com muito orgulho.
— Além de caolho por uma explosão, ter se tornado coxo devido a inúmeras torturas  e várias passagens pela polícia, qual foi seu ganho?
— Não se trata de benefício próprio. Naquele momento crucial, nós cuidamos para que a geração futura tivesse direitos respeitados. Conseguimos coibir a truculência que imperava na pátria.
— Então sonhava em ser um mártir?
— Aquele que defende sua pátria, não tem rosto nem nome.
— É justamente por isso que não questiono e tampouco gravito pelos meandros negros da política. Nada contesto.
— O ócio contestatório ceifa sonhos e poda a democracia.
— Não estou nem ai.
           — Devo deduzir que você concorda com a roubalheira que impera em todas as esferas administrativas atualmente.
— Também não é por ai. Se pisar no meu calo, eu viro um bicho. Não suporto a idéia de ser ludibriado.
— O imposto que você paga está sendo subtraído e você não se importa com o fato?
— Não estão me roubando diretamente.
— Não? Sei que você gosta de viajar. Quando se depara com uma estrada em péssimas condições, a quem cabe a culpa.
— Oras, do governo.
— certamente existia uma verba para a manutenção da estrada, que foi desviada para outra obra que rende votos ou simplesmente inventaram uma licitação de araque e surrupiaram o dinheiro. E você ainda diz que não estão atacando o seu bolso.
— Se acha tão trágico o fato, posso pegar outra estrada e pronto.
— Solução simples. E os outros...
— Que se danem. Quando estou com contas atrasadas, ninguém chega com nenhuma moeda para me socorrer. Então porque eu deveria ser o defensor dos injustiçados? Não tenho vocação para ser um patriota falido.
— Você sempre foi individualista. Lembro que no colégio, ao término do ano letivo, jamais doava os livros que não mais usaria no ano subseqüente!
— Comprava—os com o meu dinheiro. Em se procedendo a isto, poderia e posso fazer o que quiser com meus pertences.
— Seu ceticismo não vislumbra nenhuma claridade.
— Quem precisa de luz é penumbra.
— Se você pudesse imaginar a brutalidade do AI 5?
— AI 5?
— falo do ato inconstitucional número cinco. Uma medida que os generais ditadores inventaram para legalizar suas atrocidades contra o povo brasileiro.
— Eu com isso!
— Uma nação é feita por homens desbravadores, depois, outros homens com caráter, lutam para instituir a democracia que é sinônima de pátria livre, com plena liberdade de expressão.
— Você articula com a corriqueira eloqüência dos salvadores da pátria. Mas acho que hoje no Brasil as pessoas vivem com dignidade.
— A cada dia o povo é subtraído e ludibriado com o engodo da bolsa família e outros artifícios. Na sobrevida que assola noventa e oito por cento dos brasileiros, a cada dia, são aporreados por migalhas que os induz ao caótico sedentarismo da mente.
— A pobreza prolifera por todo o mundo. Aqui não seria diferente.
— Se todos pensarmos assim, não haverá melhoria. Engolir  o menosprezo dos mandatários, é o mesmo que imputar um chip de aquiescência e retroagir à escravatura.
— Você deveria ser canonizado ainda em vida. Quanto sentimento de justiça...Em vão.
— No dia em que os governantes abolirem a ganância, certamente o mundo ira respirar o ar da liberdade  e a fome será erradicada.
— Não mexendo com meu bolso, estou de acordo.
— Sem a partilha, toda medida será inconsistente frente à voracidade que habita em rancorosos corações.
— Bom...Para mim está tarde, vou dormir. Mas, em algum ponto da conversa, num pequeno detalhe que não me lembro agora, dou a maior  força.
— você é daqueles que dizem: “dou a maior força, se estiver caindo eu empurro”...?

                       Às dez horas da noite, as luzes do manicômio judicial de Brasília foram apagadas. Desfigurado, o último preso político brasileiro ainda encarcerado estava dopado e a cada dia era anestesiado pela pílula do conformismo e lhe imputavam o sedativo da aquiescência. Era um estorvo para os corruptos e condenado ao ostracismo. Sem nome, destituído de forças, com uma mente sem lembranças, estava perdido. Precisava encontrar o seu “eu” para tentar achar-se. Mordeu o próprio braço e deliciou se com o sangue jorrado. Olhou para o espelho, agora em penumbra e despediu se:

                        — Até amanhã.
— Amanhã não será um novo dia — respondeu o espelho.

                       Amarrou a corda no alto da grade que fechava a cela e apertou o nó envolto no pescoço; certamente iria suportar o peso do corpo.
Um roedor espiava a cena com desatenção. O país estava impregnado de ratos que usavam estranhos colarinhos brancos.
Paulo Izael
Enviado por Paulo Izael em 05/02/2007
Alterado em 21/09/2021
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