Paulo Izael
Escrevo o que sinto, mas não vivo o que escrevo.
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MARIDO MALANDRO





Era uma sexta feira treze. Uma piração conflitante adentrava-se em minha mente. Eu era um vendedor de material elétrico, fazia parte de um departamento de vendas composto por outros três colegas e uma vendedora externa.
Meio dia, na hora do almoço, perdi as estribeiras e caminhei até uma boteco que ficava ao lado da loja. Um lugarzinho sempre apinhado e conhecido por “Bar do Osmar”.
-Geraldo, deixa rolar uma com limão – pedi eu ao atendente.
-Óxente, Reginaldo, nunca vi tu beber nada?
- Você não tem nada a ver com isso, lerdo! Sirva logo esta droga de cachaça que eu não estou pra muita conversa.
O atendente havia percebido minha irritação. O líquido desceu goela abaixo. Eu me senti o dono da bola, liberado.
- Escuta aqui animal, dá mais uma- ordenei eu, limpando a boca com um pano imundo.
Aquela era a quinta dose. Era manguaça que não acabava mais. O bafo que emanava de minha boca, era um misto de odor de banheiro público e barraca de peixe em feira. Eu era um alambique ambulante.Com passos sinuosos, voltei trôpego para a loja.
13h30, senti que estava atrasado. Deveria estar no batente meia hora antes. Entrei na miudinha, nenhum dos lerdos notara meu atraso. Ali era uma moleza para se chegar depois do horário. Mal sentei em minha mesa para dar início ao trabalho, um colega berrou:
- Reginaldo, pega a linha B.
- Quem fala? – perguntei ao vendedor, disfarçando o bafo.
- Não interessa!Vai atender ou quer que eu desligue?
Eu poderia ter sido grosseiro com o imbecil, no entanto, não dei ouvidos para os berros para não complicar mais minha situação. Atendi a ligação.
- Pois não.
-Quanto custa cada lâmpada fluorescente de 40 watts?
- Dez dólares.
- Ta ficando louco, que preço é este? – gritou o cliente desligando. A lâmpada não custava mais que um dólar.
Eu estava era embriagado
Outra ligação, outro cliente consultando:
- Sr. Reginaldo, comprei um contator siemens ref. 3TF-44, em 220Vca e preciso de uma bobina em 380Vcc.
- Não vendo acessórios.
- Sabe onde posso encontrar.
- Na casa.
- Que casa?
- Casa de sua mãe..ah ah ah !
Tudo girava. Senti-me na rua, demitido, desempregado. As reclamações quanto a minha conduta se avolumavam. Eram intermináveis ligações para o serviço de atendimento ao cliente. Arriado, baqueado, caído, zonzo e capengo; eu era alvo de gozação junto aos cretinos do departamento de vendas. Tiravam-me como otário, até a vendedora externa resolveu dar uma folgar, estava se criando para cima de mim.
Cabisbaixo, eu me grilava com o riso faceiro dos sacanas. Pego de surpresa por uma peça do destino, num cochilo, vacilei e findei por cair da cadeira, levando na queda vários objetos que estavam sob a mesa. Mancada pesada!
Sonolento, estava eu levantando quando olhei para cima e ouvi uma saraivada de xingos. Era o Araújo, gerente da empresa. Pensei em elogiar sua verruga. As palavras não saiam, um nó na garganta impedia a dicção costumeira. O gerente na condição de carrasco chegou forte, como exigia o cargo:
- Não tem vergonha de trabalhar neste estado. Sr Reginaldo? Até o patrão já me telefonou perguntado se aqui era da “Elétrica Carlos Pinga e Reginaldo Bafo”, qual é a tua, está querendo me derrubar?
Carlos Pinga era outro vendedor que não conseguia trabalhar sóbrio.Olhei para o Araújo, teria que sensibilizar o homem, não poderia perder aquele emprego.
- Sei disso, Sr. Araújo. Acho que estou um pouquinho alto, mas deve compreender que esta é a primeira vez que bebo em serviço – disse eu, fingindo chorar.
- Não me venha com essa conversa fiada. Aqui nesta firma não existe proteção, errou, eu mando embora.
- Se é assim, como explicar que o Carlos Pinga toma todas e nunca é punido?
- É diferente! – respondeu o Araújo, levantando os ombros.
- Como diferente? perguntei eu, evitando direcionar a boca para ele, meu bafo poderia matá-lo.
O gerente Araújo encarou-me e perguntou em sussurros, quase que inaudível, junto a meu ouvido:
- Esqueci sua pergunta. Que é mesmo que perguntou?
A lerdeza do Araújo era famosa. Havia esquecido da pergunta, mas não se esquecera de mim.
- O Carlos Pinga bebe e fica impune!
- O caso dele é uma questão de estabilidade alcoólica. Direitos adquiridos de acordo com o decreto nº 51. Sentiu firmeza no meu prosear? Logo-logo escrevo um conto, ah ah ah!
- Falar como você é difícil, Araújo. Tem o dom da palavra.
Araújo estava vulnerável, aquele era o momento do perdão. Pedi:
- Araújo, sei que extrapolei o limite. O que peço é uma nova chance, beleza?
- Nada de nova chance, o Sr. Está é louco. Onde é que se viu atender ao telefone e prosear maliciosamente com a mulher do dono?
Nem me lembrava deste fato, era demissão por justa causa.
- Qual delas  O homem é um devasso! – disse eu sem pensar, minha ruína.
- Está suspendo por três dias.
Eu tinha que apelar na defesa, forcei:
- Se é assim, então serei obrigado a contar uns podres do patrão.
- está demitido.
- Não tendo nenhum coelho na cartola, nem na manga, dancei. Estava na rua da amargura. Ainda tentei dialogar:
- Vamos lá, Araújo, uma chance.
- Negativo. Alem de bêbado, também é levantador de falso testemunho.
Toda a corriola reparava em minha queda. Minha vontade era esmurrar a todos.
Olhei para o Araújo e lembrei-me de um flagra que eu lhe havia dado uns tempos atrás, intimidade com uma funcionária.Cochichei baixinho em seu ouvido.
Vermelho, foi a cor do Araújo ao ouvir meus comentários.Ele ficou impaciente, penteava a verruga.
- Comentou este fato com alguém ? – perguntou Araújo, quase em silêncio.
- Claro que não, tenho juízo.
- Vou mudar o veredicto
Eu sabia das coisas. Se abrisse a boca! O pronunciamento do Araújo agora era ouvido por todos.
- Considerando que sempre foi um bom funcionário com anos de casa, e atendendo ao seu encarecido pedido, revogo e demissão e lhe dou o resto da tarde para descansar.
Senti que estava melhorando do porre. Minha memória estava revivendo e me lembrei de outro fato importante. Cochichei novamente no ouvido do Araújo.
- Ontem eu vi o patrão dirigindo.
- E daí? O carro é dele – respondeu Araújo em sussurros.
- Acontece que ele estava com aquela pessoa no carro. Se a esposa fica sabendo disso, com certeza vai todo mundo parar no distrito novamente, inclusive você, que será enquadrado como alcoviteiro.
Demonstrando mais uma vez o aparente nervosismo, Araújo tampou minha boca com delicadeza e disse em voz alta:
- Agora que eu sei que a comida do bar do Osmar estava estragada e lhe fez mal e, para compensá-lo desta indisposição, alem de folgar o resto da tarde, também estará de folga na segunda feira.
Meus olhos murchos ganharam vida. Eu já ia saindo quando fui chamado pelo Araújo. Olhei para ele, a verruga oscilava, mais parecia uma vibrador. Fiquei temeroso quanto a uma reviravolta.
- Tome – disse Araújo, estirando um tufo de notas.
Inacreditável! Contei o pororó. Muitos dólares.Num espasmo de alegria, eu tive a nítida impressão de estar vomitando. Quando acordei, minutos depois, notei que não era apenas impressão. Um naco azul de mortadela ainda estava grudado na manga da camisa.
- cambaleando, ganhei a rua Ribeiro da Silva. São Paulo estava um inferno de trânsito. Não sabia ao certo se estava demitido ou não. Catei os bolsos, arranquei um bolo de notas e contei, quinhentos dólares. Os pilantras da loja haviam me grampeado algumas notas e ainda por cima deixaram um bilhete amassado que dizia: “se grana de bêbado não tem dono, imagine o resto...!”.
Não me grilei. Levei a mão à testa e constatei as crescentes rugas que assolavam. Na verdade eu sempre fora um sujeito otário, um panaca diplomado, zoado por todos, inclusive por minha mulher. Tantos anos de casado e ainda era dominado pela megera.
Durante toda a nossa pigmentada e insana união, eu era o que se pode chamar de um marido perfeito na arte da submissão. O raro e verdadeiro estereótipo do parceiro bem comportado que jamais se atrasava no horário de chegar em casa. Nunca pulara a cerca a procura de amantes, para não cometer infidelidade e acabar como vários amigos, sem moral. Eu levava uma vida sossegada conforme mandava o mandamento conjugal. Sucedia-se um corriqueiro ritual: trocava frauda dos pequenos, encerava o chão da casa, fazia compra na feira; no supermercado, cuidava da parte culinária e finalmente acordava todos os dias de madrugada e despencava até a padaria do Sr. Manoel, trazia o pão e passava o café. Depois da batalha, enfrentava ônibus lotado, infestado de marmiteiros intragáveis com seus destratos para comigo.
Brincadeira, não? Aquele confinamento diário torturou-me a ponto de resultar na bebedeira daquela sexta feira.
Olhei para o relógio, 19h00. Estávamos em horário de verão.O véu da noite começava a enlaçar a terra da garoa.
Eu zanzava sem rumo. Ainda na rua Ribeiro da Silva, dei com o bar do Mário, camarada ligeiro na conta, como aumentava. Entrei. Ele discutia com a esposa, dona Maria. Não assenti.
- Manda uma caipirinha de vodca.
Tomei mais seis doses. Estava ainda mais lerdo. Poderia cair a qualquer momento. O álcool fazia efeito imediato. Vi um dragão que cuspia fogo em minha direção. Gritei no boteco, estrebuchei com afinco. Xinguei a mãe de todos e mandei a merda o pessoalzinho que passava na rua. Casquei o bico num riso largo, eu estava enfim dominando. Resolvi arredar pé da Ribeiro da Silva. Meus olhos estavam sonolentos e murchos, coisas de alcoólatra.
O interessante é que eu não estava arrependido, não. Tudo aquilo era novidade para mim. Soava como uma afirmação de liberdade. Naquele momento compreendi que o mundo acontecia na calada da noite. Nas ruas, tudo corria solto e liberado. E pensar que perdi longos anos debruçado naquela mesa do departamento com o telefone dependurado no pescoço, aturando aporrinhaçao de papagaios enfeitados. Andei até o começo da avenida Rio Branco e logo estava no largo Paissandu. Não demorou e pintou uma rapariguinha de seus dezesseis-dezessete anos.
- Vem cá bem!
- Quanto é a morte? perguntei, entrando no esquema da oferta.
- Cem dólares, uma moleza.
Tinha que pechinchar. Lembrei-me dos conselhos do Araújo.
- Pago cinqüenta. É pegar ou largar.
- Já peguei! – concordou a mundana.
- Vamos?
- Fazer o quê! respondeu a putinha com arrogância.
- Não gostei da conversa, está me tirando por algum mané?
- Imagina, benzinho. Estava brincando. Vamos namorar na cama e fazer um bebezinho?
Aceitei o arrego. Mesmo assim lhe um croque na cachola pra ela ficar esperta comigo e não voltar a folgar. Afinal de contas, eu lera muito sobre prostitutas.
E lá fui eu. Dez anos de casado e puro como um santo. Como todo santo é de barro e um dia se quebra... Eu era o marido-amante. Estava gostando da safadeza e não percebia que o tempo não para. A hora de chegar em casa estava estourada e a mesalina fazia milagres sobre a cama redonda.
Adormeci num sono profundo.
Co-coró-cocó ! O canto do galo anunciava a chegada de um novo dia. O som ecoou como uma bomba em meus tímpanos, despertei atemorizado. Olhei para o relógio, 08h45. A pressa era uma só, o dia estava claro.
Procurei a putazinha pelo imundo quarto, ela havia partido com a minha carteira. Eu que pensava ser esperto! Tremi de medo. Na verdade eu não sabia explicar aquele medo. Era uma coisa ruim, um sentimento de culpa irreparável, num misto de traição e infidelidade. Estava perdido. Quando chegasse em casa, minha mulher com certeza me mataria. Como que aquilo fora acontecer justamente comigo que jamais passara a noite fora e nem sequer avançara  um minuto no horário de chegar em casa.
Um suor frio escorreu da face encardida. Eu precisava encontrar rapidamente uma saída convincente. Estava fazendo uso de todo o Q.I.
Num segundo, feito relâmpago, vesti meus molambos e pinotei do motel, troncho de cisma, como o coração batendo alto. Os dedos tremiam. Procurei um cigarro, acendi. Na caixa de fósforos estava escrito: “cortesia do Motel Night, volte sempre!” Jurei de pés juntos que ali não apareceria jamais.
Senti um soco no estomago, tudo embrulhava. Vi o fígado cair e me conformei porque ainda me restava as pernas para andar.
De repente, como um milagre, veio-me uma luz, uma idéia salvadora. Alguém poderia me dar uma dica, me solucionar o problema. Foi então que me lembrei do Mário Barriga, desqualificado no joguinho de sinuca, mas, tarimbado na arte de engabelar esposas e perito em desculpas. Certamente me indicaria uma saída.
Cartão de telefone na mão disquei:
- Alô, é Mário Barriga
-Não, é a mãe Barriga, quer dizer, a mãe dele.
- Pode chamar ele para mim? Diz que é urgente, quem fala é o Reginaldo!
- Bem ele andou aprontando umas, batendo o carro mais uma vez, chegou em casa embriagado. Não tive escolha, atendendo a um pedido da mulher dele, fui obrigada a pô-lo de castigo por dois anos. Mas como é urgente, vou quebrar o seu galho, um instante.
Acendi outro cigarro e joguei o fósforo no lixo, lembranças indesejáveis. Aqueles segundos pareciam intermináveis, como se fosse uma eternidade.
- Alô, quem fala
- É o Reginaldo.
- Fala, Régis, tudo bem?
- Ôrra meu, bem mal – respondi com foz trêmula – estou é empepinado, fiquei até agora na gandaia e não sei como chegar em casa e esta hora do dia!
- Passou a noite fora? Está melhorando. Daqui a pouco vai bater o record do patrão, três dias ininterruptos na farra..ah ah ah . Qual é o problema?
- Não encontro desculpa, estou ferrado.
- Isto é simples de resolves.
Um alívio imediato instalou-se em mim.
- Simples? Deus do Céu  será que você não entendeu meu sufoco ?
- Claro que entendi. Escuta só, manja de sinuca, né ?
- Lógico.
- Beleza pura. É o seguinte, vá até um salão de jogo e se lambuze de giz azul. Meta giz nas unhas manche de leve a manga da camisa e um pouco de giz branco perto dos bolsos da calça. Pronto, já enganou a trouxa da sua mulher.
- E o que falo para ela?
- Diga que estava num motel com uma mulher em altas libidinagens e perdeu a hora. E tudo estará em ordem. Esposa é como eleitor, esquece logo.
- Ficou louco, Mário Barriga, está querendo me colocar numa fria?
- Pode botar fé, na boa. Ela não vai acreditar que você estava com outra mulher. Pois quando notar que você está lambuzado de giz, tudo estará explicado.
Pensei por um segundo e decidi seguir o conselho.
- Vou seguir o seu esquema, Barriga. Espero que ela acredite nesta história; pois como você sabe, minha esposa é uma santa mulher. Se descobrir que eu a estou traindo, nem sei do que ela será capaz. Ela odeia infidelidade conjugal. Respeita-me muito. Vou desligar, muito obrigado pela dica.
Contente, uma refrescante onde de alivio imediato, invadiu meu tremulo corpo. Rumei para casa com esperanças renovadas.
Eu pensava, repensava e refletia pesaroso. Encarando a possibilidade de minha esposa não engolir a desculpa esfarrapada. Mas o que tinha eu a perder diante da situação, senão chegar em casa com uma conversa pesada, caprichar na dissertação e folclorizar  a mentira
Avistei minha casa, minhas pernas tremeram de medo. O coração disparou.
- Onde estava, irresponsável? – perguntou minha esposa aos gritos.
- estava com uma mina no motel.
Ela mediu-me de cima a baixo, esperei pelo tapa.
- O desgraçado ainda vem com mentiras. Larga de conversa fiada!
O plano estava dando certo. Investi na afirmação:
- É verdade, alta libidinagem, varei a noite e perdi a hora.
Indiferente, ela soltou uma gargalhada e disse caçoando de mim:
- Tudo lorota, conversinha besta. Estava era jogando sinuca. Olhe para suas mãos e sua roupa, está sujo de giz.E para seu conhecimento, com esta cara de pangaré você não arruma coisa alguma para passar a noite. Vá dormir que o seu mal é sono.
Satisfeito por ela ter facilmente engolido a desculpa, entrei no quarto como um tiro e logo notei algo estranho. O cinzeiro repleto de pontas de cigarro, ela não fumava. Na cabeceira da cama, um litro de uísque estava pela metade, ela não bebia. Dependurada na parede estava uma jaqueta de couro, eu nunca tivera uma antes.
-Fui tragado pela sonolência e me entreguei sem resistir ao sono dos justos. Esqueci da vida e adormeci como uma criança.
Dia seguinte, como era de rotina, lá estava eu na padaria do Sr. Manoel. Pedi o pão e notei que as pessoas me olhavam de soslaio. Ia seguindo meu caminho quando ouvi alguém dizer que na madrugada anterior, viram alguém  pulando a janela de minha casa, trajando apenas  uma ceroula  e com peças de roupas entre ao tiracolo.
- Seria uma ladrão? perguntei eu.
Omitiram-se, nada responderam. Limitaram-se a cochichos seguidos de risos. Não contente com a resposta, perguntei mais uma vez, com ar de desconfiança. Foi ai que obtive a resposta dada por um malandro escolado, através de um verso improvisado:



Todo malandro andarilho,
Tem seu dia de caseiro.
Quando ele chega em casa,
Alguém já chegou primeiro.
Paulo Izael
Enviado por Paulo Izael em 26/06/2005
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