Joguinho - Reunião de Malandros.
É com muito orgulho e sem falsa modéstia
que dedico este conto aos parceiros:
Doni(Donizeti)
Joca(Joaquim)
Zelão(José)
Carneiro(Francisco)
Rapaziada esperta no joguinho de damas e mestres em jogadas memoráveis.
Estava na bronca!
Andava em devaneios múltiplos, ziguezagueando a esmo. Buscava algo, não sabia o quê. Aquela choramingação danada incrustada na insensata mente, aquela louca angústia em forma de maresia incontida; todos aqueles sintomas caracterizados faziam-me compreender que eram frutos das “frescuras” do coração, um treco estranho também denominado ciúme. Só,prossigo rua adentro feito um semimorto,cuca pra lá de Bagdá, meio fundido, cabeça desfeita e uma dura solidão machucando.
Ciúme, tédio,bronca...tudo é perfeitamente cabível em nossas vulneráveis cacholinhas de reles mortais asquerosos e possessivos, mas o meu inflamado coração não conseguia entender e nem ao menos admitir a idéia. Chifrudo? Nunca! “Lady”, “Lady”... esse era o nome da mulher infiel. A simples lembrança de seu nome fazia-me recordar uma pá de coisas. Aquela mina não era fácil, ela me lembra da praça, de furtivos encontros, o falsificado uísque com duas pedrinhas de gelo e o Martini ingerível; o primeiro encontro ...Santos! Ah, que saudades dos dias de desenfreada folia, dos intensos ciúmes doentios! Mas agora tudo já era, piou. Descartei a messalina de uma vez por todas. Tudo o que é falso dura pouco e o pouco às vezes é muito, o que resta é uma infinda encucação que não mata mas deixa as cicatrizes da dor...castiga, rasga, azucrina. Por isso, perfeitamente conscientizado de que passara por chifrudo, dei um tempo na cabeça e isolei as mefistofélicas dramas que envolvem o amor.
Estava na bronca!
Cruzei a fétida e rua e contornei a esquina. Ouvi um otário vomitar que já passavam das sete da noite. Preciso de um trago, pensei, com a goela seca. “Lady”, o nome da putinha veio-me à mente feito um açoite. Fiquei frio, na manha. Jurei que ficaria calmo, pois, de virada ainda poria meus remelentos olhos nela e desforraria minha cólera em forma de tapas, um corretivo. A goela continuava seca, carecia de um gole. Olhei pra o céu e constatei que o véu negro da noite enlaçava a grande metrópole de São Paulo, era noite. Ganhei o primeiro bar que trombei. Cheguei zoado, titubeante, já havia tomado umas. O bar era um muquifo imundo, pessoalzinho mal-encarado.
- Uma pinga com limão! –pedi ao inerte atendente com remelas a despencar dos desfalecidos olhos.
Sobre o imundo balcão rolou minha cachaça. Dei uma bola no me, engoli tudo;desceu rasgando. Observei que os remelentos encafifados namoravam o restinho de pinga que estava no copo.
Estava na bronca!
Catei um assento. Novamente a saudade, maresia. Acendi um cigarro. Veio a aporrinhação que trucidava tudo, era lembrança chamando paixão. Eram medonhas recordações de frenéticas noitadas nos quartos de motéis, decorados com inúmeros espelhos iluminados por vários tipos de lâmpadas como, luz negra, gás néon, refletores e fluorescentes negras. Spot light de tudo o que era tipo. Nas paredes podiam-se ver belas falsificações de Portinari. Ao meio estava o palco principal da zoeira, a tradicional cama redonda com suas luzes, treme-tremes, gingas e trepidações. Ali neguinho trepava até em parede. A magia do ambiente fazia até com que defunto se excitasse.
Na verdade, com pouca bronca àquela altura. Só foi pintar aquela gostosa lembrança e a imagem de messalina transformou-se, a mina agora se tornara uma santa para mim. Santa “Lady”. Senti-me melhor. As pontas dos chifres encurtaram. Levei o copo à boca e engoli a gota que restava, desbaratinei manso. Ao fundo do boteco, vi uma batelada de crioulos munidos de cavaquinho, cuícas, timbas e um pandeiro, entoavam uma samba de morro com cadência:
“Moro lá em cima, lá no morro”.
E não me esqueçam, pois não sofro.
Só quem é frouxo está morto
E o sambista, canta solto...”
Acabara a bronca.
De repente, o muquifo maléfico se acendeu e ganhou vida, pois chegara no ambiente um fulano por Thiago, vulgo e famoso “Camaleão Dourado”, camarada esperto demais com seus fricotes e macetes; detentor de uma conversa afiada, palavreado afinado, bem alinhado, bigode bem aparado e, em sua face notava-se ainda uma bela costeleta realçada pela forte brilhantina que lhe cobria os negros e lisos cabelos. Um típico “gentleman da boca do lixo”.
O Carisma de Camaleão Dourado era embusteiro, faceiro, com flor na lapela e outros adornos mais. Rodopiou numa falsa ginga e disse:
- Uísque, paspalho!
Nisso, um João-ninguém de meia tigela fez a devida apresentação para o ilustre gentleman:
- Chapinhas, esse aqui é o famoso Camaleão Dourado. Um
verdadeiro mestre no joguinho de damas. Ele veio até aqui a fim de jantar os afobadinhos que cismam que sabem jogar. Quem se habilita a testar o mestre?
Cocei a cabeça e franzi a testa num sinal de protesto, pois todos sabiam que eu, Dindinho, conhecia tudo do joguinho de damas e não poderia admitir que um Camaleão dos infernos viesse por duvidas quanto a isso. Num minutinho pintou o primeiro parceirinho. Afobadinho que só vendo! Camaleão empolgou-se; abriu uma maleta preta e exibiu uma beleza de tabuleiro de mármore com pedras de marfim.
- Eu cheguei para engolir todos os Camaleões ociosos...ah, ah, ah...-gabou-se o trouxa.
- Vamos começar com uma quina na melhor de três, certo?
- Como você quiser, Camaleão. Eu ganho de qualquer jeito, me garanto.
A malacaiada estava em sepulcral silêncio. O joguinho iria começar. Dois jogadores e apenas uma zombaria no final.
Num piscar de olhos o dinheirinho do otário levantou vôo. Camaleão dourado era cobra criada de duas cabeças, sabia das coisas.
- O canalha pagou o preço do “não saber” – disse em voz
alta o megalomaníaco Camaleão Dourado.
Otário era o que não faltava. Mais um se apresentou e o temido Camaleão Dourado jantou-o com euforia. Enfiou toda a graninha do otário no bolso,mas,justiça seja feita ao megalomaníaco, o homem era uma fera no joguinho;comia para frente, para trás com esperteza. Tinha lá seus truques, dava uma pedra e comia uma dama dos parceiros e mais quatro pedras. Conhecia a ratoeira, dava o bote na hora certa. Cara esperto demais, muito esperto!
- Se eu tivesse um dinheirinho desbancaria esse papagaio enfeitado!
Virei-me para ver o autor da frase que desafiava Camaleão Dourado. Era um malandro em final de carreira. Neguinho metido em transações de fumo, mas estava duro, a firma andava derrubada, a casa havia caído. Por outro lado, tinha a fama de ter sido um mestre de damas no passado. Não tardou e logo pintou um patrão no jogo:
- Eu banco. Aqui está a nota, quinhentos cruzados – o patrão escorregou a grana sobre o infecto balcão e o malandro calejado ajeitou as pedras de marfim sobre o tabuleiro dividido em 64 quadradinhos
- Estou na área para jogar pesado e machucar os fraquinhos! – disse Camaleão Dourado.
- Violência é comigo mesmo – retrucou o malandro adversário.
- Isso mesmo, meu chapa. Esse Camaleão tem muito é fogo de palha. Arranha ele só para tirar um baratinho! – gozou o patrão.
O joguinho teve início.
- Vou te dar a vantagem de quatro pedras. Gosto mais é de pato assado!
Jurei para mim mesmo que Camaleão Dourado deveria estar louco. Dar quatro pedras de vantagem para um adversário desconhecido era dar muita sopa ao azar.
- Não vou dar quatro pedras – disse Camaleão diante do ambiente tenso e mudo – vou dar é seis pedras para este trouxa!
Eu vi a expressão de ódio estampada no esquelético rosto do malandro idoso.
Agora era pra valer. Camaleão Dourado estava com as pedras brancas e era mão do jogo, quem iniciava. Jogou bem e encurralou o fraquinho. Jogou mais duas vezes e abocanhou três pedras do idoso, quatro...cinco, oito pedras e, finalmente comeu as pedras restantes, totalizando 12 pedras do malandro falador sem ao menos dar uma chance ao otário de lhe tomar uma pedra sequer. Vitória esmagadora de Camaleão Dourado.
Eu sou terrível! Sou o maior jogador de damas de vocês já viram!
Eu já ia dando o fora quando ouvi aquilo:
- Dindinho, joga com Camaleão Dourado!
A frase invadiu-me por inteiro acompanhada por uma rajada de vento frio, gelei. Negócio de tremedeira sem retrocesso. Eu? Jogar com aquele esperto? Jamais. Seu jogo era de cobra criada de duas cabeças. Mas e daí , pensei mais calmo. Qual era o meu medo? Não tinha nada a temer, pois quando jogava eu zoava com classe, matava os parceirinhos; Era melífluo no tabuleiro. Mas minha situação era caótica: se jogasse, perderia, se corresse fica
ria de moral baixo perante os esqueléticos. E não é nado bom mancar diante do pessoalzinho inteirado. Que faria? Olhei para a entrada do boteco e suspirei de felicidade ao ver meu salvador entrando. Era um ótimo jogador de damas, o Zé Paraná, leão no joguinho. Quando Zé Paraná tomou chegada, focalizou o tabuleiro de damas, se alegrou todo com um olhar sutil e embromou:
- Tem jogo para mais um?
A megalomania de Camaleão Dourado se fez presente no ato:
- Para você não. Aqui só joga quem conhece do artigo.
- Um rabo-de-galo – pediu Zé Paraná.
Acertadamente Zé Paraná não gostara da deixa de Camaleão Dourado. Zé Paraná sabia que tinha bagagem no joguinho e no afirmar de Camaleão, ele sentiu-se suspicaz. Eu fiquei na minha. Medo.
- Cinco mil por partida, encara essa? – disse Zé Paraná desafiando.
- Eu, o campeão Camaleão Dourado, jamais recusa grana de gato miado!
Acabrunhei-me. Pousei meus já citados remelentos olhos no joguinho. Queria porque queria que Zé Paraná ganhasse a partida. Camaleão Dourado era muito falante e folgado. Arrogante em todo o teor da palavra. A torcida calada ligada no jogo. Eu, mudo.
A precipitada e sinuosa saída de Zé Paraná foi um prato cheio para Camaleão Dourado que, de início já janta uma pedra na moleza. Considerei a errônea saída de Zé Paraná como resultado de um óbvio nervosismo que impera em todo joguinho catimbado. Uma barata subiu por minha perna, derrubei-a e esmaguei-a sem remorso. Em seguida todos que assistiam `a disputa levantaram-se e aplaudiram Camaleão Dourado, que numa só jogada acabou com Zé Paraná. Disputa rápida, quase que sem cronometragem. A perspicácia de Camaleão Dourado era anormal. Alugava os trouxas.
- Então, Zé Paraná, cadê o seu joguinho, pé rapado?! – caçoou Camaleão em voz alta.
Iniciou-se a segunda partida. O ritual repetiu-se. Mais uma vez Zé Paraná encostou a barriguinha na mesa para pagar cinco mil cruzados. O perdedor estava abatido, já não carteava marra com afinco. Estava desmoralizado feito pinto molhado e a galera não perdoa os fraquinhos, nunca. Exacerbaram:
- Sai fora, malandro de araque! Se cismar em aparecer, vá roubar pra ser preso e presepar no xilindró, trouxa diplomado!
Estava mais que claro que Camaleão Dourado detinha todos os presentes, era ídolo incontestável da plebe decadente.
Desnorteado e despido de sua grana, Zé Paraná catou seu galo-de-briga e correu num pique só.
- Dindinho, joga com Camaleão! – gritaram, queriam ver sangue, o meu.
Tremi de medo. Os melhores jogadores de damas que ousaram enfrentar Camaleão Dourado foram aniquilados, caíram a seus pés. Só restava eu. Os desgraçados insistiram comigo:
- Dindinho, joga com Camaleão!
Senti um leve calafrio envolver-me. Defrontar-me com aquele monstro do joguinho seria tarefa árdua, suicídio. Catei os bolsos. Não estava com muito, tudo pichulé, grana miúda, grana curta. Cocei a face rosada. Corri o olho pelo recinto. Jogo de catimba enrustido, todos de butuca ligada.
Camaleão Dourado comeu-se com os olhos da morte. Em fração de segundos abateu uma mosca da família dos taquinídeos; prendeu-a entre os dedos e disse em tom zombeteiro:
- Você vai ficar assim, Dindinho duma figa!
Eu sabia que aquilo era catimba de jogador. Camaleão fazia aquilo para me fazer tremer, mas não era necessário todo aquele trabalho de base, eu já tremia feito uma vara verde frente ao fogo. Recostei-me, escorreguei mil cruzados sobre a imunda mesa e olhei pra o tabuleiro. Sem nada dizer, fiquei na miúda. A galera queria ver humilhação, desaforados torcedores impiedosos.
- Para ganhar de Camaleão Dourado, nem o diabo! – gritou um adepto de Camaleão.
Analisei a frase e conclui que Camaleão Dourado estava coberto e protegido por forças ocultas. Lembrei-me de meus tempos de terreiro, evoquei “Exu” que é o mensageiro dos orixás, confundido com o diabo, pois gosta de derrubar os trabalhos no terreiro. Saudei-o: “La-ro-iê”.
Mas que nada! Camaleão estava carregado de esperteza. Sabia tudo de tudo. Exibiu seu lindo “smoking”, baforou a nicotina do “Hollywood” com filtro, a fumaça concentrou-se em minha face já bem corada. Grilei-me com aquilo. O tabuleiro estava arrumado como o diabo gosta. O patife olhou-me mais uma vez e ainda por cima gozou:
- Vai comer o pão que o diabo comprou fiado e amassou com o rabo e, vendeu por valor dobrado.
Criei coragem, empinei o peito para frente, pois quem gosta da gente é a gente. A partida ia se iniciar. Senti meu coração acelerar sem parar. Todos me fitavam. Minha vez de dar um vexame estava próxima. Por que não sai junto com Zé Paraná?Evitaria tudo. Levantei os olhos, Camaleão não dava espaço, encarava-me, comia-me com os olhos de gato morto. Os loucos queriam ver minha derrota, estavam impacientes com a demora.
- Como é Dindinho? Vê se joga logo, já vimos que você esta embromando porque não joga coisíssima nenhuma. Pato!
Não respondi à pilhéria. Realmente estava embromando e não tinha certeza se meu jogo era suficiente para ganhar de Camaleão Dourado. Jogar eu jogaria, mas ganhar era impossível, o homem era um bicho no joguinho, cheio de truques.
O joguinho começara!
A melhor de três valia a soma de mil cruzados. Logo de saída Camaleão Dourado doou uma rodada de manguaça para todos, querendo com aquilo ganhar ainda mais a consciência dos danados que o aplaudiam. Joguei tudo o que sabia e o que não sabia. Pela primeira vez Camaleão Dourado mudou de cor, até ai não me assombrei, pois camaleão muda de cor, camuflando-se de acordo com o ambiente. Mas o Camaleão jogador mudara para a cor vermelha, contrariando sua milenar transformação, estava vermelho de medo. A galera que outrora sorria sem parar, agora via seu ídolo se avermelhar.
Aproveitei o vacilo do adversário e fiz uma jogada de mestre. Comi quatro pedras do esperto; investi para cima dele sem remorsos, minha pedra quando alcançou a oitava linha do tabuleiro, foi promovida a dama, tendo a partir daí o direito de transitar por todo o tabuleiro com liberdade para pular quantas casas desejasse. Eu jogava solto, liberado. Meu semblante agora era outro, galanteava-me interiormente, rapava o pobre Camaleão Dourado.
O muquifo estava em profundo silêncio. O rei estava sendo destronado, caindo de quatro. Eu não dava espaço nem fôlego. Nem bem começara a segunda partida e lá estava eu, galopando em cima de Camaleão Dourado. Num segundinho já jantara a grana do otário. A megalomania apoderava-se de mim, usufruía tudo o quanto me era ofertado. A torcida já era minha. O desmoralizado Camaleão Dourado estava inerte...jogamos, jogamos; eu liquidava o papagaio enfeitado. Eu estava ganhando uma fortuna de dinheiro.
- Acabou a grana, fraquinho? – perguntei com arrogância.
A moral de Camaleão estava a zero. Ele nada respondeu. Escorregou seu último naco de dinheiro sobre a mesa, um mil e quinhentos cruzados, o resto estava em meu bolso. Só a ultima grana já era moeda relativa a um mês de trampo. Dei um tempo e fui até o banheiro. Contei o pororó. Passavam de sessenta mil cruzados, nunca andara com tanta grana. Dei uma mijadinha para aliviar a bexiga e voltei.
- Dindinho, o que você vai fazer com ele?
- Agora vou depená-lo, Camaleão duma figa!
Comecei a última partida. Valia um mil e quinhentos cruzados, a última esperança para Camaleão Dourado. Eu estava uma fera. Joguei duro e foi tiro e queda. Abati o pardal em vôo rasante. Acabei com o cretino. O muquifo ganhou euforia, vida. Incrível, as sanguessugas me rodearam, elegeram-me o novo mestre do jogo de damas.
Eu estava consagrado, estiquei o braço, escorreguei uma nota de cem cruzados no balcão.
- Uísque, paspalho! – imitei o gesto que Camaleão fizera de início.
Amargurado, feito um mendigo bem vestido, Camaleão estava arrasado num canto. Eu queria humilhá-lo ainda mais:
- Quer jogar mais, Camaleão desbotado?
- A grana acabou.
- Você ainda tem o smoking, não é mesmo?
Topou jogar. Seria sua última chance para se redimir com a galera. Eu joguei zombando e ganhei fácil.
- Agora eu estou arruinado! –balbuciou Camaleão levando as mãos à cabeça.
- E a calça?
Foi um massacre. Fiz cinco damas. Rapei o lerdo. Ele ficara só de ceroula(era um antigo de vestes anacrônicas.)
Encabulado, Camaleão findou por esconder-se por detrás de umas caixas; vexame era pouco para expressar seus gestos de baixeza. Gabei-me com euforia, estava que estava. Ainda por cima lhe disse:
- Vê se da próxima vez aprende a jogar, bode velho!
Apoiaram-me:
- É isso ai Dindinho, duro nele!
Olhei para o bobo com seus ponteiros reluzentes, era madrugada alta, o dia estava amanhecendo, passava das seis da manhã. Meus olhos estavam vermelhos, meu corpo grudava na roupa, emanando um fedor medonho. Estava estragado. O copo de uísque marcava bobeira, esnobei o uísque falsificado e pedi:
- uma cachaça com limão.
Engoli. Desceu solta, rasgando a goela.
- Outra – ordenei.
O sabor era outro, ingerível.
- Mais uma caprichada.
Agora a danada era agradável. O organismo estava adaptado. O doce gostar, o prazer alcoólico excitava-me. Liquido, liquido incolor, também conhecido por desgraça engarrafada que se ingerida e não levada a sério, pode levar fulaninho ao rumo do cemitério!
- Dindinho, podemos tomar uns traguinhos ?
- podem, seus fraquinhos! Tomem todas que eu banco o porre.
O segredo de todo malandro esperto é ambientar-se com os lerdos mumificados. A plebe desbotada é feita imprensa marrom, uma hora bate palma, outra hora senta o pau. Paz é o melhor negócio e povo viciado é povo mandado.
- Dindinho, você conhece alguém que joga mais damas que você?
- ninguém se equipara a mim, eu sou o que de melhor existe no joguinho de damas. A minha metralhadora é a inteligência, meu de Q.I superior é inigualável.
Sete horas da manhã. Os pobres já entravam e saiam do muquifo para comprar leite e pão.
A malacaiada ainda continuava rodeando o balcão e tomavam mais cachaça do que deviam. Eu bancava tudo, queria era mais com aqueles trouxas.
Um esperto que acabara de comprar um pão, tomou chegada e olhou para o tabuleiro.
- Está a passeio o afim de joguinho? Perguntei, querendo depenar mais um fraquinho.
- O senhor é o famoso Dindinho?
- Senhor ta no céu. Eu sou o próprio Dindinho em carne e pinto!
Gostaram da minha resposta, conversa afiada. Ouvi as palmas ressoarem pelo muquifo, era a consagração esperada.
- Jogar com o senhor é suicídio. Sua fama estourou pela noite. Todos comentam a sua vitória sobre o Camaleão Dourado. Uma verdadeira lenda viva é o que o senhor é.
- Pode ir dando o fora. Quem gosta de puxa-saco é trouxa inseguro.
O fulano saiu. Mas no fundo eu gostara daquilo. A fama é boa. Eu me sentia anestesiado pelo repentino sucesso. O ego estava alimentado, consagrado...insuperável!
- O que é que eu sou? – perguntei para a galera.
Não vacilaram, responderam numa só voz:
- O rei, Dindinho, o maior.!
Espiei à minha volta, todos me olhavam com imensa admiração.
- Mais uma com limão.
Eu estava com a corda toda. Muita grana mofando no bolso. O doce sabor da vitória incrustado em minha mente. O boteco já não mais rendia nada. Neguinho algum teria coragem e jogo para me enfrentar. Eu já ia saindo quando resolvi humilhar pela última vez, seria uma saída triunfal. Perguntei em voz alta para os fraquinhos que chegavam para comprar pão e leite, esnobei?
- Tem mais algum pato por aí?
Parecia ter ouvido um sussurro. Repeti a pergunta para ter certeza absoluta de meu poderio:
- Tem mais algum pato por aí?
- Tem.
Quem havia respondido? Olhei. Não era possível, só mesmo um insano teria dito aquilo. Corri os remelentos olhos mais uma vez para todos os lados do muquifo e não vi ninguém. Um tremendo blefe,conclui pesaroso. Queria era enfrentar um parceirinho de primeira.
- Tem jogador para mim?
- Tem, meu senhor.
Num canto escuro do boteco pude observar um garoto feinho com um par de lentes nos olhos que mais se pareciam com uma luneta dupla. O garoto tinha cara de criancinha órfã; expressão carente , cabelos encaracolados, gordinho, pinta de intelectual,um verdadeiro “nerd”. Havia algo mais na expressão do garoto que eu não conseguira detectar de momento. Qual era a do garoto?
- O senhor me dá licença para disputar uma melhor de três? – perguntou o garoto.
Só poderia tratar-se de brincadeira. Mas decidi levar a farra adiante.
- Pivete, você tem grana? – perguntei indignado.
- Minha mãe me deu quinhentos cruzados para comprar um pão, um saquinho de leite e um tablete de margarida. Isto totaliza a soma de cinqüenta cruzados e o restante é para pagar uma conta antiga.
Todos olhavam para o garoto e riam.
- Então como é que tenciona jogar comigo? Vai no kô e areia, feinho?
- Com quatrocentos e cinqüenta cruzados. Se por acaso eu perder para o senhor, minha mãe me esfolará Vico. Mas, mesmo assim apanharei feliz pelo fato de ter jogado, com o melhor, com o mestre Dindinho.
- “Se por acaso perder para o senhor”, meu Deus, você dever ser biruta! Não saque que suas chances contra mim são remotas?
- Sei perfeitamente. Considerando sua vantagem de 99%, eu ainda jogo com 1% de possibilidade.
A plebe mumificada não perdera tempo, cascaram o bico num riso largo e duradouro. O garoto espiava aleatório, nada dizia. Caminhou humildemente e sentou-se na mesa onde estava o tabuleiro. Calmamente ele retirou uma flanela do bolso e limpou as lentes do óculo. A galera já não agüentava os gestos do tipinho excêntrico. Alguém certamente mandara aquele garoto até o bar para tirar uma barato. Gozação de algum perdedor despeitado comigo.
- Um copo de leite gelado por favor. – pediu o garoto.
Outra gargalhada coletiva ressoou pelo fétido boteco. Minha torcida estava eufórica no riso. Pedir leite gelado num bar daquele era o mesmo que pular de um prédio de vinte andares e cair ileso.
- Não servimos leite, garoto bobo! – rosnou o dono do bar.
- Desculpe, não sabia.
Na falto do mesmo o pirralho contentou-se em mascar um chiclete de bolas. Olhei bem para o pequenino, ele tinha uma expressão, a já citada expressão carente e agora eu via também um fundo semblante lúgubre, olhos profundos. Pensei a princípio, tratar-se de um anão. Estava enganado, era um pequenino de estatura normal com seus doze-treze anos.
- Garoto, vou te rapar! Começamos com quanto?
- Cem cruzados pela melhor de três partidas. Está bem assim, senhor Dindinho?
- Ah, pra mim qualquer merda serve, vou ganhar mesmo, seu pivete enxerido!
Todos estavam na expectativa de minhas jogadas memoráveis.
- Bota mais cachaça pra todo mundo, eu pago! – disse eu enraivecido. Não sabia o porquê da raiva.
Ao dizer aquilo, eu imitara mais uma vez o gesto do caído Camaleão Dourado. Velha tática para cativar os fraquinhos que depois fariam propaganda gratuita pelos botecos da vida. Todos abocanharam seus copos, menos o triste Camaleão Dourado. Para ele eu não pagaria nada, ele tinha mais era que ficar quietinho em seu canto. Quem perde até as calças num joguinho de damas não merece nenhuma chance nem consideração. O perdedor tem que pagar o preço caro da derrota. Pangaré de asfalto não tem direito a perdão.
Dei uma bufa, limpei as remelas dos olhos, acendi um verde e castiguei a décima dose da desgraça engarrafada. Depois do “pega”, dispensei o verde e catei os bolsos, veio o cigarro torto. Olhei para o Camaleão Dourado e me veio à mente uma idéia luminosa.
- Camaleão?- perguntei. Venha até aqui.
- Sim! – respondeu Camaleão em voz baixa, como um servo.
Vem jogar com o garoto. Se ganhar levas as calças e uma grana pra condução. Se perder, sairá daqui sem a ceroula, entendeu?
- Pode deixar comigo. Vou trucidar esse pestinha. Vou acabar com esse garoto cheirando a fralda! Sou o Camaleão, eu me garanto.
A megalomania voltara ao Camaleão Dourado. Já era outro, confiante, senhor de si. Duro, sem nenhum, vestido apenas de ceroula e folgando feito milionário.
- Podem começar – ordenei.
O garoto assustou a todos. Mal o jogo começara e sua vantagem era de duas pedras, que coisa surpreendente, pensei. Em jogo de cobra criada, quem perde uma pedra tem poucas possibilidades de chegar a vitória, restando apenas jogar em cima de um empate. Perder duas pedras então é o mesmo que perder o pique da partida. Camaleão Dourado teria que jogar duro, do contrário o garoto o jantaria. Precisas tomada de pedras por parte do garoto. O riso largo e o gozo dos fricoteiros que assistiam à partida perturbavam moralmente e a concentração de Camaleão Dourada já deixava a desejar, ele padecia.
Percebi que a galera reparava impaciente em Camaleão Dourado, estava sendo observado e lhe cobravam uma boa atuação insultando-o:
- Como é que fica Camaleão? Mete bronca nesse moleque ranhento duma figa, rasga ele! Lugar de pivete é em casa, debaixo da saia da coroa!
Eu estava por demais ligado no joguinho. Fixei-me no melífluo garoto - tão novo e craque no jogo de damas! Como teria aprendido jogadas excelentes? O pirralho mascava o chiclete e esbanjava jogo como ninguém. Comia pedras de tudo o quanto é jeito e maneira- comia aqui, comia ali, ia trucidando Camaleão Dourado. No tabuleiro viam-se quatro damas para o garoto, enquanto que o sofrido Camaleão ...ah, estava míope, sem nada. A vantagem do par de lentes era assustadora. A desvantagem de Camaleão Dourado era monstra.
A partida estava praticamente definida. A galera queria ver Camaleão mudar de cor.
- O Camaleão Dourado vai tirar o quê? – perguntou um.
- A ceroula! – responderam os demais.
Qual é a peça do vestuário masculino que os quadrados usam por baixo das calças e que cobre as pernas até os tornozelos?
Gargalhas!
- É a ceroula.
Acabara a partida. Vantagem de seis damas para o pequenino.
- E o que é que Camaleão Dourado fará agora?
- A ceroula! – responderam todos.
Tirou mesmo! Eu vi com meus próprios olhos o gosto amargo da derrota expandido nos vermelhos olhos do abatido Camaleão Dourado. Ficara nu, pelado, desprotegido!
- Joga com o pivete, Dindinho!
Agora me escalavam para acabar com a sorte do garoto. Silenciei-me. Senti escorrer um suor na testa. Lembrei-me de minha Lady. O ambiente estava em frenesi. Camaleão Dourado num canto e a plebe do baixo clero me vendo como um algoz. Decidi encarar a ferinha, vitória fácil.
- Bom dia para todos, já vou indo - disse o garoto despedindo-se.
O bar estava calado.
- Por gentileza moço, pode me dar o pão o leito e a margarina? – pediu o garoto.
Ouvi, saquei que o pequeno gajo estava com medo de mim, amarelando. Folguei. Carteei mais marra que um bloco de carnaval. Matei o garoto na base da gozação e picadilha.
- Onde pensa que vai, fraquinho? Venha cá, não vai sair assim não! Primeiro o papai aqui vai participar do seu bolso e efetuar a retirada do dinheirinho que mofa. Vamos jogar!!!
- Preciso ir, já passam das oito da manhã.
- Tarde que nada! Jogador que é jogador encara hora como minuto. Pinta de otário você tem, mas será que também é covarde?
- Não senhor.
- Não senhor o quê?
- Não sou covarde.
- Ah bom! Então vamos jogar.
- Não quero mais, o senhor é deveras um mestre. Não tenho jogo para enfrentá-lo e nem dinheiro para apostar.
- Não restou quatrocentos e cinqüenta cruzados de troco?
- É para pagar a conta de mamãe!
- “Mamãe”, que bonitinho – falei caçoando e continuei:- Preste atenção na oferta do dia: eu aposto quatro mil quinhentos cruzados contra os seus quatrocentos e cinqüenta cruzados, topa?
- O dinheiro é para pagar a conta, não para apostar. – justificou-se o pirralho.
A galera estava incendiada:
- Joga com o Dindinho
- Joga, moleque mole!
- Se estiver com medo poder perder rápido e sair correndo...ah, ah, ah
- Dindinho o matará em questão de segundos.
Novamente o pequenino iniciou o ritual: flanela, limpeza,lentes brilhantes. O rosto do pirralho não demonstrava nenhum nervosismo, tampouco preocupação. Apenas pensava paulatinamente. Aquilo me encucava.
- Isso mesmo garoto, vou te matar! Disse eu confiante na fácil vitória.
Ajeitei as pedras de mármore sobre o tabuleiro de marfim. Acendi um cigarro e baforei nicotina na cara do “pedaço de gente”. Eu tinha a vantagem de não estar nervoso. Para disputar com aquele idiota não haveria necessidade de me afobar facilmente. Durante as difíceis partidas que disputara com excelentes adversários, sempre ficava calmo, na boca de espera, aguardando o momento certo para dar o bote certeiro. Já salgara uma pá de otários e esperto de araque que nunca sonhariam em ver-me pela frente. Era o destruidor Dindinho do pedaço e evoquei a ovação da torcida:
- Jogo damas como ninguém e como serei conhecido daqui pra frente?
- Dindinho, o rei! – responderam os puxa-sacos inveterados.
Estiquei o dedo indicador e dei o sinal para que fosse iniciado o grande prêmio. Sai na frente, mordendo. Galopei em cima do garoto e comi uma pedra, mais uma...minha vantagem era de duas pedras.
- Fedorentos, o que é que eu sou?
- Nosso rei, rei Dindinho!!!
O par de lentes se remexeu e mascou a goma. Ele estava indiferente com a perda de duas pedras. Jogou e me ofertou mais duas pedras. Minha vantagem agora estava ampliada para quatro pedras. Ofertou-se mais uma pedra, comi com a mão cheia. Todos olharam para o garoto e não entenderam como é que ele ficara tão vulnerável, fraquinho de uma hora para outra. O pequenino tocou no tabuleiro com o polegar trêmulo, indicando-me mais uma pedra que eu havia esquecido de tomar.
- O senhor não vai comer esta pedra?
Casquei o bico num riso profundo.
- Deus do céu, que moleque bocó. Já que insiste em passar vexame, deixa que eu te ajudo a afogar-se ainda mais na merda. Lembre-se que é a sexta pedra que me dá de graça. Depois não vá chorar e nem me chamar de malandrão por abusar de criancinha...ah, ah,ah!
Foi com extrema satisfação que comi a pedra e fui aplaudido de pé pelos presentes. Cascateei grandezas em cima do fraco garotinho. O danado continuava a mascar o chiclete e aparentava muita calma. Jogou, me ofertou uma outra pedra, era a sétima, comi depressa, antes que ele se arrependesse do erro cometido. Mas em seguida senti um calafrio gelado. Estava na bronca. Antevi que o garoto era um cão. Havia me dado sete pedras premeditadas. Ele era vivo demais. Começou a me rapar: comeu uma, duas...já estava com sete pedras tomadas na mão. Comeu mais duas e fez duas damas. Cocei a cabeça em desespero. O infeliz conseguira algo inacreditável, jogada jamais visto nem executada pelos mestres. Estava acabando comigo. Morri.
Silêncio sepulcral. Todos estavam estarrecidos. Uma grande jogada, digna de um gênio.
Cabisbaixo, eu não me conformava com aquela derrota. Achara que fora puro lance de sorte. Injuriei-me. Bronqueado, comecei a segunda partida. Novamente o pirralho feinho me rachou ao meio. Perdi feio, um esculacho.
Eu jogava nervoso, meus dedos tremiam. Já dançava com quatro mil e quinhentos cruzados. Era bom? O garoto me jantava. Era guloso e esperto demais. Ia transferindo meu dinheirinho para seu bolso. Eu via a graninha ir se ausentando de mim e mudando-se para outro bolso. Não gostava nada, nada daquilo. O pequenino era maquiavélico de tudo; cheio de fazer damas, uma atrás da outra. Jogávamos a nona partida e o vi com seis damas numa só partida. Continuei perdendo de uma forma desenfreada. Os desgraçados que assistiam ao jogo não abriam o bico. Conheciam-me de longa data, sabiam que eu ainda poderia dar uma guinada e esfolar o feinho. Eu não era mole e não aceitava insultos, se não pudesse ganhar na conversa, ia no braço e, se ainda assim não resolvesse, então metia chumbo quente no lombo do desgraçado. Olhavam para mim e viam a minha face corada, estava vermelho de raiva. Eles eram testemunhas que quando eu estava naquele estado...metia o braço no primeiro galo que se atrevesse a cantar mais alto que eu.
A fim de amansar-me, pedi uma cachaça com limão. O danado do álcool desceu goela abaixo queimando tudo. Olhei para o desfalecido Camaleão Dourado que se escondia num canto. Duro, pelado e arruinado. Azar o dele, quem mandou perder até a ceroula no joguinho?
Novamente encarei meu executor. Senti ódio pelo garoto. Esperto demais para o meu gosto. Cheio de me arrumar truques e armadilhas. Catei os bolsos e me apercebi que estavam vazios. Vazios? Permaneci incrédulo. Havia perdido toda a minha grana sempre achando que ganharia a partida seguinte. Já vinha o arrepio gelado. Belisquei-me para acreditar que estava em plena catástrofe monetária. Senti a unha cravar-se na pele desbotada, findei por acreditar na ruína. Expeli uma bufa, a catinga emanou pelo ambiente enfumaçado. Custei a acreditar na periclitante situação. O danado rapara toda minha grana. Eu estava inferiorizado. Ouvi uma trovinha oriunda do fundo do boteco. Estavam mangando de mim e perdendo o respeito juntamente como o medo:
“Dindinho é um fraquinho,
perdeu tudo para o fraco garotinho”...
Virei-me rápido, iria dar uma peitada no galante que ousara me alugar. Não o vi. Eu estava caído, durinho mesmo. Mas ainda tinha meu relógio, era dinheiro, não ?
O sol entrava por uma fresta no telhado. Era dia claro, eu sentia uma fome medonha. Tentei evitar, mas olhei para o garoto, sempre taciturno, alheio, mudo.
- Aceita o meu relógio como aposta?
- Não prefere continuar o jogo outro dia, senhor?
- Nem pensar, sinto a vitória batendo à minha porta. Vamos jogar agora.
- Que assim seja, senhor Dindinho.
Teve início a partida. Algo dentro de mim dizia que aquela partida seria minha virada, claro que poderia ganhar, estava dando azar. Era minha última chance, eu tremia. Desta feita eu jogara com garra. Senti que poderia ganhar. Não deu outra, ganhara uma partida do feinho. Era a recíproca imperando. Senti um tufo de notas entre os dedos. Começamos outra partida. Eu era a mão do jogo. Sai e comi uma pedra do par de lentes.
- Trouxas, o que é que eu sou?
- O nosso rei, o rei de todos, o rei Dindinho!
A galera me elogiava, puxavam meu saco.
- Dindinho é o maior!
Beleza pura. A fato de me paparicarem, aguçava minha mente, novamente eu estava numa boa. O garoto estava cansado. Passava do meio dia. Ninguém arredava pé do muquifo. Decididamente era um jogo para ficar na história. Cheguei mais, caprichava nos movimentos das pedras. Meu bolso voltava a ser volumoso. Era a grana que retornava a quem de direito, no seu devido lugar. O muquifo era encardido, meus admiradores chegavam em bando. Muita gente rodeava o tabuleiro. Estavam impacientes, na expectativa de minhas grandes jogadas, queriam aprender com o bonitão aqui. Teve até apostas e cotavam-se como favoritíssimo, não tinham dúvidas quanto a minha picardia. Estava esfolando o frangote.
- Um chiclete por obséquio – pediu o par de lentes.
Era noite. Um vento refrescante entrava pelas janelas. Eu me sentia mole. O garoto começou a demonstrar todo o seu potencial. Ganhou várias partidas. Joguei tudo o que sabia e dei uma pedra, perdi novamente. Maresiei-me com as consecutivas derrotas. Cocei a cachola que zunia. A galera chiava, pediam sangue, o meu. Eu estava encurralado, tinha que esfriar o jogo, dar um tempo. Passei a embromar muito, catimbava, estudava demoradamente cada jogada, estava ganhando tempo. O desgraçado do garoto continuava a me jantar. Mastigava os últimos farelos que ainda teimavam em ficar sobre mim. Jogávamos há muitas horas e o pestinha não demonstrava cansaço algum.
- Uma cachaça.
- Com limão, Dindinho?
- Cacete, não sabe que eu só tomo com limão?
Bebi. Entupi-me de manguaça. Estava chapado, louco, perdido. Achincalhavam-me impiedosamente. Perdi a última partida.
- A grana acabou – confessei amargurado.
- Aposte as calças, Dindinho. O garoto não é imortal, insuperável. – disse um calho.
- Aposte a sua ceroula, Dindinho. Talvez o garoto perca.
Gargalhadas. Minha nossa! Eu era o motivo da chacota. Todos riam de mim, menos o garoto, ele se concentrava no joguinho, não queria graça.
- Senhor Dindinho, tem mesmo certeza de que quer apostar sua ceroula?
- Tenho. Moleque trouxa. Vamos jogar esse maldito jogo.
Para minha infelicidade, ele resolvera aceitar minha ceroula pela aposta de cinco mil cruzados. Até que estava sendo cavalheiro e gentil. Nem pensei nas conseqüências, o que não poderia admitir era a derrota, tinha que ganhar do pivete. Olhei para Camaleão Dourado que se acabrunhava num canto por ter perdido a ceroula. Mas aquilo não aconteceria comigo, eu era o diferencial, diferente do vacilão do camaleão. Parti para enfrentar a ferinha.
Última chance e ultima jogo.
Iniciei já trêmulo. O pixote lustrava os óculos, aquilo me irritava. Tudo me irritava. Meteu a mão no bolso e retirou um chiclete, mascava. Aquilo me deixava aturdido, com os nervos retesados a ponto de implodirem. Comecei mal, uma saída péssima, novo suicido. Diante do nervosismo em que me encontrava, vacilei e lhe ofertei duas pedras. Enganei-me as seqüência da jogada, erro de cálculo, perdi a terceira pedra. O rato do garoto não deixou por três pedras e forçou-me a lhe conceder cinco pedras, diga-se de passagem, ele jogou muito, uma jogada que recebeu aplausos de todos. Sem qualquer escolha viável, fui me entregando, franqueando as posições...abaixando a ceroula, estava perdido.
Acabara o jogo.
Eu Estava arruinado, caído, humilhado e os miseráveis me cobraram:
- Dindinho, tire a sua ceroula. Não vê que perdeu, trouxa!
O riso faceiro dos calhordas me incomodava. Sabia que num joguinho de damas o perdedor sempre tem que cumprir com a aposta. Pagar. Como eu não tinha grana e apostara minha ceroula, tinha que entregá-la para o par de lentes. A curriola nunca perdoa os fracos. Não existe compaixão para o perdedor, nem arrego. Encabulado de cabo a rabo, fui descendo a ceroula. estava pelado.
- Belo traseiro, Dindinho! – debochou um desgraçado.
Levantaram o garoto, carregaram-no sobre os ombros, era o novo mestre de damas do pedaço.
Uma viatura da polícia estacionou em frente ao muquifo xingado de bar.
- Camaleão? – cochichei baixinho em seu ouvido. – Vamos aproveitar a euforia a dar no pé de mansinho.
Íamos saindo, mas o desgraçados nos viram e deram bandeira na cagüetagem:
- Policiais, peguem aqueles dois. Estão pelados, são maníacos sexuais!
Além de sairmos duros, pelados e sem nenhum tostão furado, ainda por cima pintara os tiras na jogada e terminamos trancafiados por andarmos nas ruas pelados. Curtimos a noite no xilindró. Danei-me com tudo. Paguei caro pela arrogância exagerada.
Depois dessa me manquei. Abandonei de vez o joguinho de damas. Dias depois, com a moral abaixo de zero, sapeava num boteco das redondezas, observava uns espertos jogando damas.
- Aquele ali não é o falecido Dindinho?
Parei no ato. Virei o rosto, ocultando-o com o braço. Não daria bandeira, ninguém podia me ver ali, pois se me vissem, fatalmente viria humilhação a me trucidar. Quando ia saindo, sorrateiramente, ouvi claramente um verso em que exaltavam dois malandros inteirados quem um belo dia de um joguinho saíram pelados. Era muito:
“Dindinho e Camaleão Dourado”,
Um belo, dia de um bar saíram pelados,
Ao serem duramente trucidados
Por um garotinho miado...!
THE END
Paulo Izael
Enviado por Paulo Izael em 25/06/2005
Alterado em 20/02/2006